Um beijo da avó Isabel

Jackeline Dias
3 min readSep 12, 2022

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Dona Isabel

Dona Isabel, como era conhecida, jogava a chave do portão de cima do terraço de sua casa quando eu chegava. Uma vez por mês, ela ia ao mercado fazer as compras e, no tempo do telefone com fio, acabava dando de cara na porta e me sentava na calçada, esperando sua volta. Algumas vezes, também ia à “cidade” — assim chamava os bairros centrais - para consulta médica ou compra de roupas no “largo da concórdia”.

Assava bolos de fubá, rosquinha de coco, pé de moleque e esquecia minúsculas cascas de ovos na salada de maionese. Também ia à igreja todos os domingos e dizia ao meu pai, seu filho, você precisa batizar essas meninas. Com evidente preocupação, eu só escutava e resistia porque meu único interesse era a hóstia que pensava ser batata ruffles.

Há um tempo descobri que ela não sabia ler, achava que era baixa visibilidade em razão de seus óculos fundos que alteravam o tamanho dos olhos. Assim, em algumas das minhas visitas acompanhada de minha mãe, dona Isabel pedia para ela ler alguns trechos de uma bíblia grande e pesada. Costurava e consertava alguma roupa de sua dezena de netos, cozinhava para os almoços de domingo e organizava a ceia de Natal, com a atração do bolo gelado de tia Joana, sua nora e vizinha.

Era dona da Morena, uma das cachorras mais doces que pude conhecer. Quando Morena faleceu, lembro da sua tristeza, do litro de leite e o pouco de carne deixados na geladeira vazia da nossa casa.

Comprou meu uniforme para que eu fosse à escola lá da “cidade”, deu dinheiro para o transporte da neta cheia de esperança em estudar em uma escola melhor. Ia à nossa casa para ver seu filho e sua outra neta pouco presentes.

Não me recordo das nossas conversas, mas a imagem dela sentada no sofá bege da sala iluminada, da bíblia na estante, da cristaleira na cozinha, do seu cheiro de sabonete Dove, do não sabor de sua comida com pouco sal, do óleo de girassol, são as lembranças que permanecem. Assistíamos televisão juntas e era alegre estar próxima dela, sem objetivo algum. Somente estar em sua companhia.

Dona Isabel beijava e me abraçava carinhosamente e, ao seu lado, sentia calma. Algumas vezes, insistia para que eu dormisse em sua casa, dizendo “não quer pousar aqui?”. Sentia-se só mesmo com suas inúmeras plantas e da companhia da Pituca, cachorra sorrateira, com personalidade oposta à de Morena.

Talvez não soubesse mas, em alguns momentos, a solidão também me acompanhava. E, por isso, quase todas as tardes, caminhava alguns poucos metros em direção a sua casa e aguardava sua chegada caso não estivesse.

Brinco com meus amigos, quando faço meus bolos de fubá, que estou treinando para ser a avó dos netos de seus filhos. Olho ao redor e percebo que muito do que sou há um pouco de dona Isabel e lembro de uma frase lida a certo tempo do escritor Valter Hugo Mãe: “os filhos, dizia, levam dentro famílias inteiras”.

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Jackeline Dias

Escrevo porque as palavras dão sentido a vida. Sou educadora, amo esportes, cantar e tudo que tem a ver com expressões textuais, em especial, cinema e teatro.