Tudo sobre o ódio: novas perspectivas

Jackeline Dias
4 min readMay 1, 2022

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Com todo respeito a Bell Hooks (ela escreveu o livro Tudo sobre o amor: novas perspectivas), mas acho que temos que começar a falar mais profundamente sobre o ódio sem caracterizá-lo apenas como uma emoção negativa e que, portanto, não deve ser sentida.

Essa semana li o livro A Rosa Mais Vermelha Desabrocha — O amor nos tempos do capitalismo tardio ou por que as pessoas se apaixonam tão raramente hoje em dia” da quadrinista Liv Strömquist que gerou algumas reflexões que gostaria de compartilhar.

Vocês lembram do poeta Lord Byron das aulas de literatura quando estávamos na escola? Ele é um dos representantes do romantismo e teve um caso com a Lady Caroline Lamb. De acordo com Strömquist, quando eles se conheceram (1812), Byron tinha 24 anos e já era um poeta de renome, enquanto Caroline Lamb tinha 27 anos e era casada com outro homem. Caroline era uma grande fã de Byron, então era leitora assídua de seus livros e também escrevia algumas cartas para ele. Quando se conheceram, não aconteceu o “amor à primeira vista” porque o poeta não curtiu muito Caroline, mas logo depois superou isso e, então, iniciaram um caso. O romance foi intenso, com muitos sentimentos de amor, raiva, angústia, discussão de poesias e brigas seguidas de sexo de reconciliação.

Como Caroline era intensa em demostrar seu amor e paixão ardente por Lord Byron, escrevendo cartas e mais cartas ao seu amor, somado aos boatos sobre os dois naquela sociedade do século XIX com seu moralismo multiplicado ao quadrado, Byron decidiu se afastar um pouco deste romance fugindo de Londres. Na realidade, Byron tinha enjoado de Caroline, desapaixonou-se. E tudo bem, faz parte do se apaixonar se desapaixonar. Strömquist, inclusive, fala sobre esse processo e como não é fácil lidar com os sentimentos oriundos de um término de relação.

Todavia, Lord Byron queria dar o famoso ghosting ou o “vou comprar cigarro e já volto” sumindo da vida de Caroline, sem conversar com ela, alinhar as expectativas da relação e colocar todas as questões sociais que permeavam e impediam a continuidade do romance. Não. Simplesmente foi embora. Caroline não aceitou esse afastamento abrupto, então a mulher simplesmente INFERNIZOU a vida de Byron: além das inúmeras cartas, foi à casa dele sozinha (naquela época era visto de forma ruim, porque escancarava a relação extraconjugal, que até poderia existir desde que estivesse embaixo dos panos) e isso prejudicava enormemente a reputação do jovem poeta. Caroline era tão intensa (e engraçada) que, em uma das suas cartas, enviou tufos dos seus pelos pubianos. Nas festas que ambos estavam ela também dava um show, além de realizar rituais em torno de fogueiras para esquecer do seu amado.

Strömquist pontua que seria muito mais cômodo e confortável para Byron, caso Caroline não expressasse todos os seus sentimentos intensos e escolhesse lidar sozinha com o desconforto do desamor. Esses dias falava com uma amiga sobre como foi um processo aprender a falar quando alguém fazia algo que me machucava e, ainda, o quanto eu acabava justificando, através de uma fala afável e bondosa, a minha manifestação de descontentamento. Poucos conhecem minha versão sangue no olho, por um lado porque não é fácil me tirar do sério e, por outro, pois quando há alguma situação ou alguém com comportamento que me provoca raiva, costumo reprimir o sentimento e lidar com o desconforto sozinha.

Na era do “empoderamento” feminino ou do Irreplaceable da Beyonce (no livro, Strömquist faz uma análise da música), acho que muitas mulheres se identificam quanto ao calar-se frente a uma situação desconfortável (até mesmo violenta) e se esconder atrás da premissa de que: somos melhores do que isso (ou esse). Não considero extremamente ruim nos distanciarmos de situações ou pessoas que nos fazem mal, afinal há situações onde exprimir o sentimento de raiva ou ódio pode retornar com risco à vida da mulher (o Brasil possui um dos índices mais elevados de casos de feminicídio)[i].

Contudo, acredito que há algumas situações que podemos (e devemos) colocar nosso descontentamento, não “sorrir e acenar” como a maioria de nós fomos socializadas a acreditar que seria o correto ou se esconder atrás da ideia vaga de ser “melhor”. Podemos, então, manifestar nossa raiva com aquele boy sem noção que não nos tratou como uma pessoa (algo que deveria ser óbvio); em alguma situação de trabalho onde nos sentimos desconsideradas numa decisão que impactaria nossas atividades; em alguma mesa de bar, restaurante ou qualquer situação social onde há uma pessoa que a esteja desrespeitando de forma evidente.

Infelizmente, ao escrever esse texto, imagino quantas mulheres sequer tem a possibilidade de falar, muito menos de serem escutadas no Brasil. E ao escrever sobre o posicionamento das mulheres é necessário considerar questões estruturais que envolvem classe, raça e gênero. Porém, se podemos ter esperança, que possamos ser um pouquinho mais como Caroline, compartilhando o que se sente. Há quem questionará e achará exagerado. Mas Caroline, ao menos, não enfrentou solidão ao manifestar seu ódio (ou amor) por Byron.

[i] Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Violência Contra Mulheres em 2021. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021-v5.pdf

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Jackeline Dias

Escrevo porque as palavras dão sentido a vida. Sou educadora, amo esportes, cantar e tudo que tem a ver com expressões textuais, em especial, cinema e teatro.