Jackeline Dias
4 min readMay 18, 2022

Queria apenas tentar viver aquilo que brotava espontaneamente de mim. Porque isso me era tão difícil?

Estou em um momento de despedida daquilo que um dia achei que fazia parte de quem eu sou, mas na realidade tinha origem nas imposições do mundo externo. Hoje estava no trabalho e conseguia prever todas as minhas atividades, o que precisava ou não fazer, qual e-mail ou não enviar. Algumas pessoas ficam entediadas neste caso e eu sou uma delas, mas ao mesmo tempo não acho o tédio um sentimento sempre negativo. Ao contrário, o tédio pode revelar certas características nossas que muitas atividades podem escamoteá-las e, ainda, fazer emergir ideias e concretizar projetos.

Desde muito nova sempre conciliava cursos diversos com trabalho e escola. Confesso que era bem raro os momentos fora dos espaços de trabalho e estudos, porque sempre associei esses dois lugares a socialização e, também, a diversão. Quando era criança, minha avó insistiu para que meu pai matriculasse eu e minha irmã, pois por razões particulares dele queria nos educar em casa sob seu controle.

Ainda bem que minha avó Isabel intercedeu e lá fui eu para a pré-escola toda feliz por ver tanta gente. Eu amava, até mesmo quando estava doente. Com a possibilidade de ver pessoas para além do meu núcleo familiar e, diante de todo o contexto econômico e limitações enfrentadas naquela época, a escola era o ambiente onde interagia com outras realidades, brincava, entrava em conflito, tirava boas notas, más notas, chorava, sorria, em resumo, onde me construía. Ir à escola era sinônimo de ir além das possibilidades que a família e classe me impunham.

Não fui e não sou a única a ver instituição escolar como um lugar de possibilidades positivas frente as outras desestruturas que preferimos varrer por debaixo do tapete ao invés de discuti-las. Um dia aprendi sobre intenção e não acho que seja função da escola ser fuga de realidades complexas e vulneráveis, mas esse assunto é para outro texto.

Comecei escrevendo sobre despedida e tédio, porque tenho a impressão de que muitas pessoas fazem certas escolhas para a vida pois não querem se despedir de histórias e lugares que não são necessariamente suas. Por se recusarem a viver o tédio, a ir contra a maré da meritocracia e da ideia de que somos algo, ou seja, possuímos valor à medida do que temos em termos materiais, escolhem comprometer seu tempo escolhendo trajetórias e, por conseguinte, trabalhos que detestam, cursos e faculdades que não desejam. Ademais, ando pensando muito sobre a morte, assunto que também parece refletirmos muito pouco.

O título desse texto é a epígrafe do livro Demian do escritor Hermann Hesse. A narrativa trata da história do jovem Demian, um adolescente que está se descobrindo a partir da descoberta do mundo externo e é a escola que oferece essa possibilidade. Acho a frase linda (e ótima para pensar o desejo em psicanálise), porque elucida a dificuldade em conseguirmos nos encontrar com quem realmente somos.

Se posso ilustrar como seria o interno de cada um de nós, seria similar a um novelo desorganizado com um emaranhado de linhas onde cada uma representaria estruturas sociais, lugares e pessoas que permearam nossa constituição enquanto sujeitos. De estruturas maiores (aqui cabe colocar as estruturas sociais, econômicas e políticas engendradas historicamente) a instituições menores (família e escola, por exemplo), somos constituídos por todas as experiências que vivenciamos nesses contextos, com determinadas variações. Então, não é necessariamente fácil desatar os nós que cada fio desses lugares forma quando se cruzam. Contudo, é a partir destes desates que conseguimos olhar para quem realmente somos e, assim, traçar trajetórias que façam sentido.

Demorei onze anos, com oito deles desatando esses nós com a ajuda da terapia, para entender que não sou apenas a história dos fatores que me construíram. Sou também uma pessoa com desejos específicos, vontades que ora vão de contra ao que me ensinaram ora são similares. Assim, essa reflexão faz sentido hoje, porque já me encontro em condições sociais e materiais diferentes de uma mulher periférica e sem muitas possibilidades de escolha. Por isso, inclusive, o tédio e a monotonia de um trabalho previsível está sendo incrível.

Além deste livro do Hesse, quero aproveitar esse espaço para recomendar um conto do Caio Fernando de Abreu “Carta a José Márcio Penido” ou “Carta ao Zezim”:

“Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vaflejo? não estou certo): “caminante, no hay camino, se hace camino al andar”.”

Trata sobre esse encontro com o eu e o deixar brotar aquilo que espontaneamente vem de dentro de cada um de nós.

Jackeline Dias

Escrevo porque as palavras dão sentido a vida. Sou educadora, amo esportes, cantar e tudo que tem a ver com expressões textuais, em especial, cinema e teatro.