Não sinto nada

Jackeline Dias
4 min readNov 8, 2022

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Eleonora mal deu boa tarde e contou a história do casamento de uma de suas amigas, enquanto punha alfinetes em meu vestido azul. Aquele vestido seria mais uma tentativa de me achar atraente e bonita, talvez mais próxima de quem eu sou e, assim, atrair os olhares daqueles que gostaria de compartilhar afeto:

— Como assim? — perguntei olhando seu reflexo no espelho.

— Pois é, ele vivia insistindo para se casarem, ia atrás dela em todos os lugares e chegou a sequestrar seu cachorro. Cansada, coitada, aceitou e hoje tem um menino de 10 anos fruto dessa obrigação. Trai o marido horrores e me conta as histórias depois.

Por um bom tempo me relacionei com homens que conhecia através de aplicativos de relacionamento. Especialmente em períodos em que precisava me isolar por um tempo dos encontros espontâneos com meus amigos e pessoas aleatórias que conhecia por acaso. O que não há nessa existência algorítmica. Ouvir a história sobre a amiga de Eleonora não me surpreendeu tanto, apesar de considerá-la absurda.

Estava frio, carregava uma garrafa de vinho e vestia um vestido poá preto nas ruas do centro de São Paulo. Era uma noite bonita, fria, de céu relativamente limpo; as pessoas bebiam em bares e andavam a esmo nas ruas. Eu e meus amigos sentamos em um banco de frente a um bar, onde havia um cachorro na laje — lugar estreito demais para sua morada — quando Maurício surgiu pedindo um cigarro. Portava uma garrafinha de água em suas mãos, tinha um olhar vago, como se estivesse recuperando a sobriedade. Demos-lhe um paieiro, mas teve dificuldade de manter a chama acesa e aflito, perguntou:

— Posso desabafar dois minutos sobre o coração?

Contou que conheceu Nilda pelo Facebook e, após alguns dias de conversa pelo chat, ela perguntou se bebia com muita frequência. Por ter estado em relacionamentos com homens que consumiam mais álcool do que poderiam processar e, ser submetida a variados tipos de agressão, Nilda estava traumatizada demais para arriscar mais um relacionamento conturbado e que originam histórias tristes demais de serem escritas.

Com a voz entorpecida em uma ligação, Maurício negou, mas sua voz alterada não enganará. Nilda sabia da mentira, encerrou o relacionamento e, em pouco menos de duas semanas, apareceu em suas redes sociais junto de outro homem.

Em desespero e na ânsia de adquiri-la — tal qual se faz com um produto parcelado em muitas vezes — Maurício lhe comprou um celular. Sacou um smartphone de capa azul do bolso, cor muita próxima do vestido azul que Eleonora ajustará, e perguntou:

— Vocês têm interesse? Está novinho, acabei de comprar nas casas litorâneas.

Não queríamos o telefone, mas eu e Camila estávamos particularmente interessadas naquela história sobre o amor:

— Ela já está com outro homem…Não foi rápido demais? — Com uma expressão triste, enquanto tentava insistentemente manter a chama do paieiro acesa entre um trago e outro.

— Maurício, a vida às vezes tem dessas. É dolorido, mas não há o que fazer, além de aceitar e esperar passar — Camila ainda usou uma metáfora de que a vida é como um fluxo do rio e que devemos aceitar o que vier e não forçar para mudar seu curso.

Voltei ao mesmo lugar no dia seguinte, à tarde, para ouvir uma apresentação sobre o amor . “A Rosa mais Vermelha Desabrocha — O amor nos tempos do capitalismo tardio”, Carmen ergueu o livro ao mesmo tempo em que falará sobre como na sociedade contemporânea o amor está cada vez mais similar à aquisição de um produto: escolhemos pessoas por atividades, o que elas consomem culturalmente, se viajam, se frequentam restaurantes, tomam litrão, gostam de arte, de cinema, correm, andam de bike. Quanto mais atributos, mais desejados na prateleira dos afetos.

Um casal, sentados a minha frente, não se desgrudavam, de modo que suas cadeiras estavam tão próximas uma da outra que atrapalhava um pouco a visão do palco. Entre uma fala e outra de Carmen, via a troca de olhares concordantes dos dois, os seus beijos e carícias me irritarem. Talvez porque teorizar sobre o amor, racionalizá-lo, ainda sim não muda o fato de não tê-lo. Mas o rapaz à minha frente era familiar, então lembrei que uns dias antes o tinha visto no Dumdle com uma minibiografia: “não monogâmico”:

— Não monogamia é o caralho! O amor deveria ser reinventado, porque o que hoje chamamos de amor abarca ideias confusas permeadas pela lógica neoliberal e de consumo de pessoas — Carmen quase gritando para aquela plateia que acenava positivamente a cada palavra proferida.

Não consegui ficar para as perguntas do público, pois Bruno me esperava após três anos de curtidas e conversas online. Decidimos que talvez seria o momento de nos conhecermos pessoalmente. Despedi-me de uma amiga, dei uma olhadinha nos rostos dos que estavam ao meu redor, levantei-me e fui até o metrô. Chegando em casa, coloquei o vestido azul e saí já pouco menos esperança.

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Jackeline Dias

Escrevo porque as palavras dão sentido a vida. Sou educadora, amo esportes, cantar e tudo que tem a ver com expressões textuais, em especial, cinema e teatro.