Jackeline Dias
3 min readMar 30, 2024

Fim de um relacionamento

Fonte: Chippu

A sala de cinema estava lotada, eu e meus sentimentos estávamos espremidos entre dois desconhecidos para assistir Past Lives (Vidas Passadas). Embora pressentisse que não seria uma boa ideia ver o filme naquele momento, tenho a tendência de deixar a arte me guiar. A arte, com sua maneira delicada, mostra que a vida possui seu próprio ritmo e fluxo e que precisamos deixá-la seguir seu curso, como o rio que diante de uma pedra não para, apenas se redireciona.

Nora e Hae Sung se encontraram em uma dimensão onde a conexão que eles tinham um pelo outro não poderia ser concretizada. Não completaram as oito mil vidas necessárias para permanecerem juntos e a beleza do filme reside nessa poesia revelada pelo In-Yun e as possibilidades em viver muitas vidas:

Há uma palavra em coreano. In-Yun. Significa ‘providência’ ou ‘destino’. Mas é especificamente sobre o relacionamento entre as pessoas. Eu acho que vem do budismo. E reencarnação. É um ‘In-Yun’ se dois estranhos passarem um pelo outro na rua e suas roupas encostarem acidentalmente. Porque isso significa que deve ter havido algo entre eles em suas vidas passadas. Se duas pessoas se casam, elas dizem que é porque houve oito mil camadas de In-Yun. Mais de oito mil vidas.

Ao longo de todo o filme, há vários elementos contextuais que explicam porque nesta camada da vida os dois não poderiam permanecer juntos. Nora é filha de pais artistas, enquanto Hae nasceu em uma família tradicional da Coreia. Nora, enquanto conversava com seu companheiro Arthur, dizia se sentir menos coreana perto de Hae e como ele era tipicamente coreano. Há uma cena em que, no plano de fundo, vê-se um quadro onde há os pais de Hae sentados e, entre eles, seu filho único em pé ao centro.

Anos depois e já em Nova York, enquanto Hae conversa com Nora, ele comenta que ainda não se casou porque “tem um emprego, salário e padrão de vida medianos” e, portanto, o impossibilitaria de se casar, pois ainda não possuía recursos materiais suficientes para personificar o papel provedor em uma relação. Nora, em contrapartida, habita um pequeno apartamento em Nova York com seu companheiro e uma das razões da existência da união dos dois era a emissão do seu green card para permanecer no país legalmente.

Arthur, assim como Nora, é escritor e a conexão e encontro entre os dois ocorreu em uma residência artística. O encontro se deu através das palavras e, cabe relembrar Rubens Alves, citando Nietzsche: “Quando alguém quer casar, só há uma pergunta a ser feita: terei prazer em conversar com essa pessoa até o fim da minha vida?”.

Hae ama Nora porque “ela vai embora”, enquanto ele permanece na Coreia. Eles se amam, não porque são iguais, mas justamente porque cada um faz escolhas fascinantes e diferentes. Naquela camada em que coexistem na filosofia In-Yun, a felicidade reside na não união porque, na realidade, ela seria impossível justamente pelas diferenças e caminhos distintos que cada um escolheu seguir. O destino é paradoxal e flui como um rio, por isso, tão bonito.

Há muita beleza nos enlaces que construímos com os outros de forma quase instantânea, mas também muito poder nas conexões que não podem ser realizadas . Assim, reparo como são os caminhos e direção que tomamos na vida os elementos que nos conectam com o outro. Para Arthur, Nora é a que permanece e, para além de qualquer circunstância burocrática da existência, é nesta camada do In-Yun em que a vida de Nora faz sentido.

No início do filme, durante o encontro de Nora e Hae Sung ainda crianças, a mãe de Nora diz à mãe de Hae: “Se você abandona uma coisa, acaba ganhando outra”. Sentido foi o que Nora ganhou quando foi embora, deixando sua versão “tão coreana” apenas nas memórias de Hae Sung.

Jackeline Dias

Escrevo porque as palavras dão sentido a vida. Sou educadora, amo esportes, cantar e tudo que tem a ver com expressões textuais, em especial, cinema e teatro.