“Amor é construção”: você sabe o que isso significa?

Jackeline Dias
3 min readMar 14, 2022

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Um dia desses fui convidada por um amigo para comermos pizza em sua nova casa. Ele professor e eu do escritório, compartilhamos nossas angústias sobre nossos trabalhos, sobre relacionamentos, como ser adulto implica mais planejamento e menos impulsividade. Chato, aliás.

Estou sem TV instalada, então faz tempo que não assisto a jornais ou a novelas, o que me faz ser completamente alienada quanto aos capítulos e personagens que estão inflamando discussões nas redes sociais. Com exceção de um personagem ou outro que acaba sendo protagonista de reflexões no Instagram (que já parte de uma perspectiva específica), sei muito pouco sobre novelas. Então começamos a ver um capítulo de “Um lugar ao sol” e, em 10 minutos da narrativa, não foi difícil constatar que a escritora e roteirista se inspirou na psicanálise para escrita do roteiro.

Além de acompanhar alguns psicanalistas nas redes sociais e estudar o tema, faço análise a pouco mais de oito anos. Há jargões que vem desse lugar que são muito específicos e que se desdobram em vários significados. Pego como exemplo o conceito de “projeção”. Você provavelmente já se deparou com esse termo em mesa de bar, em conversa de aplicativos de relacionamento com seus amigos e crushs. “Ah, pessoa está projetando suas questões”: trata-se de conceito psicanalítico que, por si, não diz muita coisa, mas para quem conhece um pouco de psicanálise, sim.

Depois de alguns comentários em tom de brincadeira sobre as frases de efeito apresentadas na novela, fiquei pensando se a audiência estava boa (não que isso signifique entretenimento de boa qualidade), se o público que costuma ver as tramas globais estava acompanhando e gostando dessa nova perspectiva com personagens menos dicotômicos e mais complexos. Da época das novelas mexicanas (saudades Usurpadora), lembro que dicotomia era critério básico para produção de telenovelas: havia o herói e o vilão (em sua maior parte vilãs, porque os escritores e roteiristas pareciam querer atribuir toda a maldade do mundo às mulheres).

É interessante uma novela transmitida na maior emissora do país, em seu “horário nobre”, trazer reflexões sobre menopausa, relacionamentos, maternidade, envelhecimento, independência emocional feminina sob um viés psicanalítico, em que as personagens são mostradas em enlaces de relações de uma forma complexa, repleta de nuances não perceptíveis a “olho nu”. (a não ser que você faça análise).

Longe de criticar essa nova abordagem para a construção das personagens nas novelas, cinemas e séries, acho realmente necessárias as novas reflexões que essas produções trazem (a personagem da Andréa Beltrão acerca do envelhecimento e sexualidade feminina, por exemplo), mas me pergunto: como trazer essas reflexões sem grandes frases de efeito, em que cada palavra tem um significado e que permeia anos de análise para serem compreendidas pelo sujeito analisante? E, sobretudo, escolheu estar implicado na análise psicanalítica.

“Amor é construção”, frase de uma das personagens de “Um lugar ao sol”, não é bem uma frase com conceitos da psicanálise, mas também pressupõe certo entendimento do amor que ultrapassa a noção romântica das relações amorosas. Lacan tem um trecho talvez conhecido nas redes: “amar é dar o que não se tem a alguém que não o quer”. Não sou estudante de Lacan, pouco dos textos que li não entendi absolutamente nada e esse trecho é um exemplo de como pegar um trecho de uma obra e inserir num roteiro pode ser nada inteligível para o outro, por mais claro que possa parecer para você que faz análise. Análise não é caminho linear e óbvio, como algumas frases sugerem parecer.

Depois de anos com a psicanálise, em um caminho de vai e volta, com percursos de diferentes intensidades, percebi que por maior que seja nossa “boa vontade”, não há como enfiá-la goela abaixo e, tampouco, usá-la para resolver todos os problemas do mundo. Análise é um processo subjetivo, portanto, depende necessariamente de um sujeito e suas subjetividades.

Por mais que sejamos permeados pelas estruturas sociais, cada um de nós tem uma história única que influencia como nos enredamos com essas estruturas.

A compreensão de si, através da análise psicanalítica, não será possível em poucos meses de trama (nem de análise). Talvez decepcione um pouco, mas o processo não segue caminho “correto” com um final de libertação progressista como talvez gostaríamos. Um caminho de liberdade para o desejo, talvez. Mas, mais difícil do que nos depararmos com o nosso desejo é nos depararmos e aceitarmos o desejo do outro.

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Jackeline Dias

Escrevo porque as palavras dão sentido a vida. Sou educadora, amo esportes, cantar e tudo que tem a ver com expressões textuais, em especial, cinema e teatro.